16 de outubro de 2008

A saga do Rei Artur - parte I

Finda a temporada de 1984, com a brilhante presença na final da Taça das Taças, o calvário de Pedroto estava, também ele, à beira do fim. Agraciado, em 29 de Novembro de 1984, com a Ordem do Infante, entregue na própria residência pelo General Ramalho Eanes, o Zé do Boné via a vida a esvair-se, lentamente, nada podendo fazer para pelejar contra o malfadado cancro que o corroía. Aguentou com o estoicismo conhecido até Janeiro de 1985. Ali, no novo ano, como se a ultrapassagem desse marco constituísse uma vitória histórica, Pedroto soltou o seu último suspiro.

Estávamos em 8 de Janeiro. Uma manhã invernal, gélida, autêntico prenúncio da Morte.Dois dias depois, uma espantosa e esperada manifestação de pesar, num funeral acompanhado por milhares de pessoas. Nelas, nesses seres anónimos, dispostos a acompanhar o Mestre até à sua última morada, morava um pouco da sabedoria do treinador. Pessoas que, de uma ou de outra forma, tinham sido marcadas, de forma patente, pela vivência com um ser humano de excepção.

Num virar de página, enterrando o passado para se vencer o futuro, descobri estas palavras, tocantes, de Fernando Vaz, num elogio fúnebre de enorme simbolismo e sensibilidade:“Beirão de gema, amado por uns, odiado por outros, Pedroto foi a figura mais fascinante que conheci entre os homens do futebol do nosso tempo. O seu carácter era constante no mundo de gente enérgica que o envolveu desde muito jovem e que sempre o sujeitou ao esforço e à luta. Admirei-o como futebolista de dar sempre tudo por tudo pela acção contagiante do esforço que vertia na luta, sempre pronto a sacrificar os seus interesses pessoais ao interesse colectivo. Como treinador, pode considerar-se o melhor técnico de futebol da sua geração.”

Com o espírito do Mestre pairando, de forma quase palpável, sobre as Antas, o seu sucessor tinha chegado no Verão de 1984 à Invicta. Alvo de alguma desconfiança, pelo currículo resumido e de poucas façanhas, Artur Jorge beneficiou do toque de Midas de Pinto da Costa, pressentindo naquele jovem uma centelha de génio. Tripeiro da Sé e de Cedofeita, antigo jogador dos azuis e brancos, mostrava ser uma figura aparte no mundo do futebol indígena. Culto, revolucionário [Artur Jorge foi presidente do Sindicato dos Jogadores e candidato a deputado pelo MDP], cultivava uma imagem de diferença em relação ao estilo padronizado do treinador luso.

A tarefa herdada não se afigurava fácil. Com o último título conquistado em 1978/79, a abstinência era como uma faca afiada na memória dos que viveram o longo jejum de 19 anos. Perdeu, nesse Verão de entrada no santuário das Antas, as figuras de proa de Jaime Pacheco e Sousa, proscritos refugiados em Alvalade. Recebeu, como contrapartida, um imberbe jogador, desconhecido da maioria do público. Franzino, de pernas tortas, ao estilo de Garrincha, Futre parecia longe de poder colmatar as fugas de gente tão sonante.

Mas esse Porto tinha gente de cepa. Guerreiros que erguiam a divisa do “antes quebrar do que torcer”. João Pinto, Eurico, Lima Pereira, Inácio, Eduardo Luís, numa defesa intratável, de puro betão. No centro, metamorfoseados de formigas trabalhadoras, Frasco, Semedo, Costa e os recém-chegados Quim e André. Homens de personalidades vincadas, moldadas em vidas de árduas dificuldades, sabiam em primeira mão qual o significado da palavra sofrimento.

O toque de magia era conferido pelos pés de Jaime Magalhães, servidor de primeira categoria do Avançado. Assim mesmo. Com maiúscula. Cinco letras apenas para memorizar o nome de um dos mais mortíferos avançados do futebol português. Gomes. Era nele que se depositavam as esperanças de milhares de adeptos. Um plantel, curiosamente, apenas com dois estrangeiros. Na baliza, o jugoslavo Borota. Na frente, o irlandês Mike Walsh.

O Porto não partia como favorito. Os seus rivais directos tinham ambos treinadores novos. Estrangeiros. No Benfica, Pal Csernai era o eleito para substituir Eriksson. Do outro lado da 2ª circular, o galês John Toschack procurava levar os leões à felicidade.

Mas foram os comandados do “Rei” Artur que levaram a melhor. Jogando preferencialmente num 4-3-3, com Gomes a servir de aríete contra as muralhas defensivas adversárias, os portistas tiveram apenas uma derrota, concedida no Bessa, e 3 empates, terminando a prova com 26 vitórias, somando 55 pontos. O passo de gigante foi dado à 18ª jornada, na Luz, embate sentenciado por 1-0. Gomes, num momento de forma sublime, marcava golos de forma compulsiva.

Chegou à bonita soma de 34, feito que lhe valeu a 2ª Bota de Ouro da sua carreira. E foi Gomes, na euforia do triunfo frente ao Belenenses [5-1], tornando o Porto matematicamente campeão, depois de alvejar as redes do clube da cruz de Cristo por 3 vezes com êxito que, com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos, proferiu: “Somos campeões…lamento apenas que uma pessoa não esteja entre nós vivendo esta felicidade. Por isso, o título será, obviamente, dedicado a Pedroto”.

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Se no campeonato tudo correu de feição, a época não terminaria sem dois dissabores. E que dissabores. Daqueles de deixar um amargo de boca durante muito tempo. A caminhada triunfal em território luso parecia ter paralelismo na Taça de Portugal. Eliminatória após eliminatória, os azuis e brancos apenas pararam na final. No Jamor. Pela frente, os encarnados de Lisboa, numa crise profunda de resultados. Apesar do favoritismo generalizado favorável aos Dragões, o resultado final foi um frustrante 3-1. A favor deles.

O momento vexatório do ano aconteceu na Taça das Taças. As expectativas elevadas, depois da campanha do ano anterior, foram cerceadas de forma quase surreal. O Porto, depois de derrotado no País de Gales pelo desconhecido Wrexham por 1-0, deu a volta ao resultado, na 2ª mão. 0 3-0, facilmente alcançável na 1ª metade, não fazia pressagiar o pesadelo que se seguiu. Debaixo de um temporal violento, que fustigava o cimento das bancadas, a surpresa deu lugar ao receio, quando 2 golos de rajada colocaram o resultado no nivelado 3-2. O Porto ainda reagiu. O 4º golo, comemorado efusivamente debaixo de grossas bátegas de chuva, foi um alento precoce. Borota, tremendamente infeliz na saída aos cruzamentos, cometeu novo lapso capital. E a seguir ao apito final do árbitro, um imenso silêncio. Sepulcral. Atónitos, os homens vindos de terras britânicas, olhavam uns para os outros, quase se beliscando para acreditarem que tinham eliminado o finalista da anterior edição.

Um momento negro, um dos únicos, na saga do novo ocupante do trono do Dragão. O Rei Artur, que comandaria os seus cavaleiros da Távola Redonda até vitórias históricas…

1 comentário:

freamunde allez disse...

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