É daquelas sensações quase palpáveis, como se existisse uma espécie de predisposição sensorial para antecipar catástrofes.
Começou bem, o Domingo. Deitado na cama, naquela preguiça confortável que antecede a sincronização dos sentidos, dei por mim a constatar que tinha dormido 9 horas. Facto digno de registo, para quem, desde que foi pai, não dorme muito mais do que míseras 6 horas diárias. Eufórico, saltei da cama, sentindo a energia a percorrer o corpo revigorado. Sentei-me na poltrona predilecta, abri o livro que ando a ler [para satisfazer a vossa curiosidade, "Morte em Viena", do Daniel Silva] e mergulhei num mundo de espiões, com os serviços secretos israelitas a perseguirem denodadamente um antigo criminoso de guerra nazi. Durou 5 minutos, esta sensação de bem-estar.
Até a gritaria inconfundível de dois pequenos terroristas invadir o silêncio que pairava na sala. Aguentei as birras, os choros, os pequenos amuos, convicto de que o dia iria ser óptimo. Pois...
Aquela sensação indefinida, como se uma tragédia pairasse no horizonte, atacou-me novamente. 10.30 da manhã. Tudo pronto para se aproveitar o sol matinal, num tradicional passeio até à praia. Faltava apenas o essencial. A chave do carro...
Perguntará agora o leitor mais atento, "mas que raio, existem duas não?". Não. A outra foi-se. Sumiu-se. Em plenas férias algarvias. Mas isso é outra história...
Não havia chave. Não houve passeio para ninguém. Dito assim, com a frieza resultante do distanciamento cronológico, até parece que foi algo aceite de forma asséptica. Não foi. "A culpa foi tua.." ou "Ai sim, quem é que as deixa sempre à mão de semear do míudo, quem é?" fizeram com que os níveis de tensão atingissem o ponto de ebulição...
Ainda pensei, "porra, eu até dormi bem como o caraças. O resto do dia vai ser diferente". Pois.
14.15. Apareceu a chave do carro. Resolvemos enfrentar o trânsito domingueiro e ir espairecer a cabeça. Má ideia. Café, umas compras de ocasião no shopping do costume e uma visita a uns amigos. Tempo feito, e regresso a casa, que a hora do lanche era chegada...
O que é que podia correr mal? Nada de muito especial. A chave. Não a do carro, desta feita, mas a de casa. "Acho que deixei a carteira em casa deles...". Cerrei os punhos no volante, sentindo nova onda de fúria a invadr-me. "Achas? Mas o que é achas? Ou deixaste ou não?". Com um pouco de má vontade lá surgiu a confirmação. "Deixei". Pois...
16 quilómetros para lá, mais 16 para cá, com um puto histérico e esfomeado a espernear na cadeira do banco de trás, berrando desalmadamente, enquanto atirava a chupeta para a frente [o car***o do puto tem pontaria] e eis que, finalmente, se chegou a casa...
Aí já considerava a hipótese de aquele Domingo estar assinalado, num qualquer mapa cósmico, como contraproducente aos nativos de Touro. Senti a primeira fisgada de medo. Tentei controlar o pânico. Lembrei-me do que tinha sentido na véspera, em relação ao jogo. Acreditava numa exibição dominadora e um resultado a condizer. Pois.
Finalmente, refastelado no sofá, com os míudos a dormir, consegui ser magnânimo. Eu, monopolizador do comando da tv, permiti que a esposa fizesse um zapping e ficasse a assistir a algo inenarrável chamado "Família Superstar". Acompanhei pela internet o desenrolar da partida. E tudo corria bem...
Esbocei um sorriso de escárnio, abanando a cabeça a condizer, quando o Porto marcou o 1º. Murmurei para mim próprio: "vês, tá tudo a correr bem...". Pois.
A 2ª parte iniciou-se da melhor forma. 2-0, jogo tranquilo, a sensação de reconfortante alegria, que só a vitória dá a um adepto. Sereno, não resisti mesmo assim à tentação. Resolvi ver os últimos minutos do jogo. E deu para o torto. Supersticioso q.b, ainda hoje acho que foi esse simples gesto [o esticar do dedo em direcção ao botão do comando] que desencadeou uma série de fenómenos paranormais, que tiveram o epicentro no relvado da Amadora. Juro que foi isso...
Senti-me mergulhado numa outra dimensão, quase uma espécie de realidade alternativa, só faltando mesmo a música do "twilight zone" a acompanhar. O 1º golo, quase fortuito, do adversário, apanhou-me desprevenido, mas foi capaz de desenterrar velhos medos. A serenidade fugiu a sete pés, dando lugar ao nervosismo habitual na maior parte dos jogos. "Porque é que carreguei no botão?", ainda me martirizei, antes de ficar siderado, quando vejo o árbitro a apontar para a marca da grande penalidade. Não senti nada. Nem vontade de chorar, nem a torrente de fúria que deveria explodir, nem o velho hábito de insultar os familiares do juiz. Fiquei ali, especado, absorto, quase como se aquilo não tivesse acontecido. Mas aconteceu. E tudo, volto a teimar, porque eu carreguei no botão...
4 comentários:
Óptimo texto, Paulo. Ficámos a saber que o Helton e o Stepanov não foram afinal os principais culpados por aquele empate miserável. Para a próxima, já sabes... 'Família Superstar' é que é bonito...
Abraço.
É o exemplo perfeito de um Domingo que começou mal e acabou pior...lol...parecia um pesadelo, desde o perder as chaves até culminar naquele dasastradon resultado. Fiquei como tu, siderado. E ainda hoje me pergunto como foi possível.
Paulo :
Já me habituei à qualidade das tuas crónicas .
Muito Bom !
Agora , acredita que a culpa não foi tua , nem minha (que fiz e pensei o mesmo que tu ) mas , apenas , deles !
Um abraço
Domingo? Não seria um dia de férias qualquer menos Domingo? Não falta nessa crónica toda qualquer coisa para que seja Domingo? Depois recorrem às superstições.
Enviar um comentário