O que é ser portista? Como, onde, porquê, começou esta paixão tão arrebatadora? Quando é que cada um de nós foi tocado pelo Divino, num fenómeno tão metafísico, quase como se de uma conversão religiosa se tratasse?
Todos nós teremos experiências similares…ou nem por isso. Não será exagerado de dizer, nem de afirmar, mas acredito piamente que já nasci Dragão. Não é um exercício muito especulativo, dado que os genes foram passados, na minha família, de geração em geração. De avô para pai, deste para mim, perpetuado agora em dois rebentos, já sócios, sentindo desde a nascença o orgulho, a responsabilidade, mas também o fardo, de pertencerem não a um clube, mas a uma forma de VIDA.
Confesso que, no meu caso, era com algum espanto que via o meu avô, religiosamente colado a um transístor, aos Domingos, com a avidez estampada no rosto, bebendo concentrado as palavras que as ondas hertzianas traziam até ele. Eu, petiz, vivendo ainda num mundo de fantasia, imerso em brincadeiras próprias da infância, estranhava o comportamento de homens maduros, capazes de praguejar entre dentes, murmurando preces, vendo-os explodir, umas vezes em manifestações coléricas, com o ódio espelhado no olhar. Outras, parecendo que regrediam na idade, pulando de felicidade, punhos cerrados, gritos roucos que se soltavam de gargantas ressequidas. E a palavra mágica, a que comecei a associar esses estados de euforia: GOOOOLOOOOO DO POOOOOOOORRRTTOOOO!
Tempos felizes esses, chutando bolas de trapo, como se o Mundo, o meu Mundo, fosse apenas constituído por aquilo. O amor parental, servindo de almofada a angústias quotidianas, uma bola e a baliza. Que felicidade…
Até a um ano específico. Um ano em que senti, e vi, o que significava ser portista. 1978. Tinha eu 7 anos. Pode alguém, homem feito, regressar a um dia, ou uma noite, como era o caso, amiúde, lembrando-se de pormenores que três décadas não apagaram? Pode…
Foi um Domingo especial. Sentia-se uma electricidade no ar, como uma corrente magnética, capaz de suspender o tempo. O relógio parecia estranhamente parado. O tempo, esse, movia-se mais devagar do que de costume. O meu pai, rosto fechado, com a crispação a enrugar-lhe os olhos, respondendo quase mecanicamente a interpelações constantes da minha parte. A minha mãe, pressurosa, procurando evitar focos de conflito, quando a irritação paterna ameaçava transbordar. Nunca mais me esqueço das pessoas por quem passava, em Arouca. Rostos sorumbáticos, expressões indecifráveis, uma tensão crescente que se sentia, quase palpável. Eu, sentado nos degraus de casa dos meus avós, pressentindo que aquele era um dia diferente. O meu pai e o patriarca da família, ambos fechados dentro do carro, ouvindo o relato. Vidros abertos, cigarro atrás de cigarro, fumados num transe hipnótico pelo meu avô. Como se trazidas de longe, as vozes dos comentadores, dando eco a um anseio de toda uma geração. O Porto jogava com o Braga. Indescritível a algazarra gerada, quando as boas novas foram trazidas. Percebi que tinha chegado o fim. A partir dali, seria o primeiro dia do resto da minha vida. Aquele momento, sonhado durante 19 anos, pelo meu pai. O que é ser portista? Nesse dia aprendi. É chorar de alegria, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, gerações diferentes abraçadas, irmanadas numa causa, sentindo o orgulho de ver a bandeira azul e branca a tremeluzir, ao vento, desafiando os adversários. Ver a felicidade estampada em rostos habitualmente circunspectos, os olhos a brilhar de êxtase, os risos nervosos soltados, enquanto, mais uma vez, os claxons dos carros faziam o seu barulho infernal. Eu, pequeno, encolhido num banco traseiro, vendo uma festa que parecia não ter fim. Um cortejo de automóveis que parecia saído de um filme surrealista. As cores - impossível ficar indiferente - azuis e brancas, agitadas freneticamente por transeuntes eufóricos, num misto de alucinação colectiva e adoração religiosa.
"Ser do Porto é ganhar sempre, não é papá?", já me perguntou a Filipa, na ingenuidade típica dos 5 anos, enquanto vai memorizando nomes tão díspares como Adriano e Helton, Quaresma ou Bosingwa. E eu, protector como um Dragão para a sua cria que ainda não cospe fogo, já lhe disse: "É mais do que isso, Pipa"! Não, nunca se tratou de vencer mais, pelo menos no meu caso. É algo endémico. Algo que me angustia, quando somos vilmente atacados. Algo que me comove, que exalta as minhas paixões, quando vejo aqueles deuses de azul vestidos, lutando em terras distantes, com o emblema orgulhosamente estampado no peito, pletórico. A alegria que me invade, quando vencemos, o orgulho que ameaça transbordar do peito. É, acima de tudo, AMOR. Uma paixão, sempre de chama acesa, sempre pujante na sua manifestação. [obrigado a ti pai. obrigado a ti, avô. por me terem ensinado os mandamentos desta nossa religião. por terem sabiamente amparado o meu percurso. até hoje. por terem estado lá, naqueles momentos de angústia, quando o archibald matou o sonho nas antas. ou antes, naquele café, com a turba a comemorar, quando o aek nos humilhou. por me terem ensinado que ser do porto era mais do que uma vitória. mesmo quando a derrota, como aquela na final, aos pés da juventus, me magoou tanto. por me terem secado as lágrimas. por terem comemorado comigo. eu e tu aqui pai. o avô lá em cima. onde assistiu à consagração máxima do nosso clube. obrigado aos dois]
E pensar que tudo começou naquele dia, em 1978...
ps: artigo originalmente publicado no dia 30 de Agosto de 2007, no blog Bibó Porto
1 comentário:
Excelente. Confesso que é dos melhores textos que já li tendo como tema o Porto. Parabéns pela inspiração.
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